quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

POR UM AJUSTE JUSTO, MAS PRA QUEM ?



      O documento intitulado “Um Ajuste Justo: Uma Análise da Eficiência e da Equidade do Gasto Público no Brasil”, lançado pelo Banco Mundial com propostas para a superação do déficit público brasileiro, é o tema central da 14ª edição do boletim informativo do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS) e do Centro de Documentação Virtual (CDV). A última edição de 2017 discute o diagnóstico e as sugestões da instituição financeira, apresentando argumentos contrários e críticas de pesquisadores/as, professores/as e especialistas sobre aspectos como corte de gastos sociais, cobrança de mensalidades em universidades públicas, desconsideração dos direitos garantidos na Constituição brasileira, reforma da Previdência e falta de rigor metodológico do relatório.
Um “ajuste justo” baseado na redução de gastos sociais, na focalização das políticas sociais e de saúde, em políticas públicas de incentivo ao setor privado em áreas como educação, em cortes no funcionalismo público e na reforma da Previdência. Esta é a proposta do Banco Mundial para a superação do déficit público brasileiro, apresentada no relatório “Um Ajuste Justo: Uma Análise da Eficiência e da Equidade do Gasto Público no Brasil”. O estudo foi encomendado em 2015 pelo ex-ministro da Fazenda do governo Dilma Rousseff, Joaquim Levy, e entregue no dia 21 de novembro aos ministros da Fazenda, Henrique Meirelles, e do Planejamento, Dyogo Oliveira. A principal conclusão do documento, segundo seus próprios autores, é que “o Governo Brasileiro gasta mais do que pode e, além disso, gasta mal”.


       O relatório do Banco Mundial apresenta os gastos públicos brasileiros em oito áreas distintas, entre elas saúde, educação e Previdência Social, e aponta que governos (federal, estaduais e municipais) gastam mais do que podem, colocando em risco a sustentabilidade fiscal do país, que os gastos são ineficientes, pois não cumprem seus objetivos, e ainda que privilegiam o segmento mais rico da população. “O principal achado de nossa análise é que alguns programas governamentais beneficiam os ricos mais do que os pobres, além de não atingir de forma eficaz seus objetivos”, diz o prefácio da publicação. O incremento nos investimentos públicos aliado à queda das receitas são destacados como responsáveis por déficits fiscais anuais superiores a 8% do PIB, em 2015 e 2016, e aumento da dívida pública de 51,5% do PIB (2012) para mais de 73% do PIB (2017).


         Segundo o organismo internacional, o ajuste fiscal necessário para estabilizar a dívida pública a médio prazo é de cerca de 5% do PIB no resultado primário e “a redução dos gastos não é a única estratégia para restaurar o equilíbrio fiscal, mas é uma condição necessária”. Entre as medidas sugeridas estão também a diminuição significativa da massa salarial do funcionalismo público, com a “redução dos prêmios salariais excepcionalmente altos dos servidores públicos”; a “melhora” dos métodos de aquisições públicas de bens e serviços por meio da introdução de “estratégias customizadas para licitações públicas”; e a institucionalização de um sistema regular e rigoroso de monitoramento e avaliação das políticas públicas.

        O estudo identifica “potenciais economias fiscais em nível federal” até 2026 que chegariam a 7% do PIB: reforma previdenciária (1,8% do PIB); reduções na massa salarial de servidores públicos (0,9%); ganhos de eficiência em aquisições públicas (0,2%); mudanças em programas de assistência social e de apoio ao mercado do trabalho (1,3%); reduções nos créditos subsidiados e nos gastos tributários de apoio às empresas (2%); eliminação de créditos tributários para a saúde (0,3%); alterações no financiamento do ensino superior (0,5%); e reformas nos setores de saúde e educação (1,3%). E alerta: “As economias identificadas neste estudo exigirão alterações das atuais regras e rigidezes orçamentárias.”


A saga da eficiência 

       Ao debruçar-se sobre o setor saúde, o relatório do Banco Mundial indica uma potencial economia de cerca de 0,6% do PIB – 0,3% em “melhorias de eficiência a nível local, mantendo o mesmo nível de serviços de saúde” e outros 0,3% com o fim dos créditos tributários do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) para despesas privadas com saúde. Em comparação quanto aos níveis de eficiência dos municípios, sinaliza ganhos de 37% no atendimento primário (com economia potencial de R$ 9 bilhões) e 71% nos serviços secundários e terciários (economia potencial de R$ 12 bilhões), o que contabilizaria 0,3% do PIB. A “ineficiência” é atribuída à fragmentação do sistema público de saúde, principalmente o alto número de pequenos hospitais, o que impediria economias de escala na prestação de serviços, e à carência na integração dos sistemas e insuficiência de incentivos oferecidos a prestadores e pacientes para escolha de tratamento mais eficaz em relação ao custo.

Rafael da Silva Barbosa

      Pesquisador em Desenvolvimento Econômico, Rafael da Silva Barbosa critica a “extrema generalização” na análise de setores como a saúde, que negligencia as especificidades de cada área. “Quando o estudo sugere o fechamento de hospitais de pequeno porte por hospitais maiores em favor dos ganhos de escala, a avaliação desconhece um aspecto geográfico básico do país: o Brasil é uma nação continental com 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Logo, nesse sentido, com vistas a garantir o direito à vida, o SUS com certeza vai operar abaixo da escala ‘ótima’ em regiões mais isoladas do país, mas de forma planejada para assegurar a sustentabilidade dos cuidados em saúde. Ou seja, o que é uma ineficiência para o Banco Mundial, no sistema de saúde se traduz em direito à vida”, explica.

      Em artigo publicado no OAPS, o economista avalia que o relatório parece não se ajustar à realidade brasileira ou não entendê-la em seus traços mais gerais, especialmente ao negligenciar o contexto democrático de criação das políticas sociais expressas na Constituição de 88: “Não foram analisadas as premissas financeiras e constitucionais que dão sustentação ao desenvolvimento das políticas. O que acaba causando estranheza, haja visto que a instituição é um banco e não analisa a fundo o aspecto financeiro vicioso das Desvinculações das Receitas da União (DRU) – que retira recursos da previdência, saúde e assistência social – sobre as políticas públicas.”

Profª Ligia Giovanella

      Em análise sobre o conteúdo do documento no campo da saúde, a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ligia Giovanella, critica a abordagem centrada na eficiência produtiva do sistema de saúde e na prescrição de cortes de despesas em todos os setores de atenção, incluindo a atenção primária: “[O documento] nega o desfinanciamento crônico do SUS e a extrema privatização da atenção especializada no SUS, seja nos setores de diagnóstico e hospitalar (66% dos leitos e 87% dos tomógrafos, por exemplo, são privados). Nega as heterogeneidades sociodemográficas nacionais e a determinação social dos processos saúde doença. Ademais atribui ao SUS ineficiências inerentes à elevada participação do setor privado no sistema de saúde brasileiro”. Para Ligia, o relatório recomenda “um universalismo básico, um SUS responsável somente pela atenção básica. Nega o direito universal à saúde e ao acesso a serviços de saúde de qualidade conforme necessidades”.


Uma conta impagável? 

       O título do capítulo dedicado à Previdência – “Previdência Social: Uma Conta Impagável – já deixa evidente a posição do documento em defesa da reforma prevista pela PEC 287/2016, que tramita na Câmara com relatoria do deputado Arthur Maia (PPS-BA). O relatório conclui que o teto dos gastos, proposto pela Emenda Constitucional 95 (EC95), “somente poderá ser respeitado por meio de um rigoroso exercício de priorização”, que inclui a mudança na legislação da Previdência Social – apontada como uma das “reformas que tornariam os gastos públicos mais eficazes, eficientes e equitativo”, por constituir-se na “fonte mais importante de economia fiscal de longo prazo”. Segundo as projeções do Banco Mundial, a reforma reduziria pela metade o déficit projetado do Regime Geral de Previdência Social ao longo das próximas décadas (de 16% para 7,5% do PIB até 2067) e traria, nos próximos dez anos, aproximadamente um terço da economia fiscal exigida pela EC95 (atingindo 1.8% do PIB em 2026).

       “Os grandes e crescentes déficits do sistema previdenciário constituem um fator-chave da pressão fiscal. É essencial ajustar o sistema previdenciário à realidade de rápida mudança demográfica e alinhá-lo a padrões internacionais. Além disso, o sistema previdenciário atual é injusto, pois 35% dos subsídios previdenciários (ou seja, o desequilíbrio entre contribuições e benefícios do sistema previdenciário) beneficiam os 20% mais ricos, ao passo que somente 18% dos subsídios beneficiam os 40% mais pobres da população. A aprovação da proposta de reforma em tramitação no Congresso seria um passo importante na direção de corrigir esse desequilíbrio”, defende o relatório, que afirma ainda serem “necessárias medidas adicionais para tornar o sistema previdenciário mais equitativo e sustentável financeiramente”.


        Em contraponto a essa visão, pesquisadores/as e especialistas no tema têm apontado que não há rombo na Previdência, mas sim o descumprimento das premissas constitucionais. (Leia mais aqui e aqui). Estudos realizados anualmente pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) apontam superávit de mais de R$ 63 bilhões em 2008, quase R$ 83 bilhões em 2012 e R$ 53.892 bilhões em 2014. Por trás da propagada ideia do déficit está, portanto, o desrespeito sistemático ao modelo tripartite de financiamento da Previdência, previsto na Constituição de 1988.

Luiza Dulci

        Para a economista Luiza Dulci, as medidas propostas pela PEC 287/2016 e endossadas pelo relatório do Banco Mundial vão na contramão dos direitos garantidos na Constituição: “A reforma da previdência é, na realidade, uma contrarreforma, que tem dois objetivos principais: i) desativar ou enfraquecer a função distributiva do Estado; e ii) aquecer os mercados de previdência privada”. (Leia mais sobre as propostas de reforma da Previdência aqui). No artigo “Um ajuste mais que injusto: a contrarreforma da previdência e os trabalhadores rurais”, Luiza alerta ainda que as alterações significariam a extinção da previdência social rural, com impactos não somente sobre as populações do campo, mas também sobre as populações urbanas e para a dinâmica socioeconômica do país de modo geral.


       Outro ponto fortemente criticado pelo Banco Mundial é o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), a previdência dos servidores públicos federais, do qual resultariam “benefícios extremamente generosos – e altamente injustos – concedidos a servidores públicos contratados antes de 2003”. Servidores/as que ingressaram no setor público antes de 2003 têm direito à integralidade – o valor da aposentadoria equivale ao último salário – e à paridade, o valor aumenta se a remuneração de sua categoria na ativa é reajustada. Estes direitos são classificados como “privilégios” pelo relatório: “Os déficits do RPPS e a iniquidade do sistema previdenciário como um todo poderiam ser solucionados por meio da remoção dos privilégios concedidos aos servidores públicos contratados antes de 2003”.

Prof. Jose Celso Cardoso Jr.

      Em artigo publicado na Plataforma Política Social, José Celso Cardoso Jr. critica a análise por tratar como iguais segmentos e sistemas diferentes: “É preciso tanto separar o RGPS [Regime Geral de Previdência Social] do RPPS como separar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para tratar da previdência de cada um em separado. Ao fazer isso, ver-se-á que o RPPS do Executivo já eliminou a maior parte dos privilégios e já desenhou soluções atuariais (como o teto e a contribuição elevada nas fases ativa e inativa de vida dos servidores, aposentados e pensionistas) que praticamente resolvem o problema estrutural no longo prazo”.

Prof. João Márcio Mendes Pereira

Reformas em políticas sociais 

      Sob a justificativa de focalizar os grupos sociais mais vulneráveis, o relatório afirma que os programas sociais brasileiros – assistência social, aposentadorias sociais e apoio ao mercado de trabalho – precisam ser integrados em um sistema que evite sobreposições de benefícios e permita a economia de recursos, cerca de 1,3% do PIB em uma década. Um ponto importante da proposta é um “melhor uso da capacidade brasileira de identificar famílias carentes”. João Márcio Mendes Pereira, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), afirma que propostas voltadas para a promoção de ajustes macroeconômicos e fiscais revestidas da ideia de justiça e combate à pobreza, mas que privilegiam setores mais abastados da sociedade, são foco da agenda política do Banco Mundial. Para o historiador, o relatório parte de uma lógica que considera quem ganha três salários mínimos e tem carteira assinada um privilegiado – “na verdade, quem não estiver entre os ‘mais pobres entre os pobres’ já é visto como tal”, 
critica.


      “Resumidamente, quem pode pagar por serviços públicos deve pagar, e quem ainda não pode pagar deve dispor de programas sociais focalizados durante um tempo. Num país como o Brasil, onde a exploração da força de trabalho sempre foi desmedida, milhões trabalham na informalidade, o salário mínimo é baixo, a estrutura da propriedade da terra é altamente concentrada e a estrutura tributária é profundamente injusta, essa agenda apela à ideia de ‘combate à pobreza’ para, exatamente, tentar legitimar o rebaixamento de direitos sociais e trabalhistas”. | João Márcio Mendes Pereira (UFRRJ).
 A reformulação, dividida em três partes, abrangeria a assistência social, os subsídios salariais e o apoio dado aos desempregados. Na assistência, o relatório propõe a reformulação e integração de todos os benefícios não contributivos de transferência de renda, entre eles pensões e aposentadorias de cunho social (BPC e rural), assistência social e salário-família, em um único balcão de assistência, seguindo a experiência do Bolsa Família. “Todos os indivíduos em situação de pobreza estariam aptos a receber não mais de uma transferência condicionada à renda. Uma medida de curto prazo compatível com tal objetivo de reforma mais ampla seria a transformação do Salário-Família em um benefício condicionado à renda em nível de domicílio (beneficiando-se da capacidade do Cadastro Único) a fim de incentivar os beneficiários do Bolsa Família a migrarem para empregos formais”, aponta o relatório.


        O relatório sugere ainda uma reforma adicional partindo do reconhecimento que as aposentadorias rurais e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) são programas sociais, não benefícios previdenciários, mas que não são bem focados nos indivíduos pobres. “Na verdade, 70% dos beneficiários do BPC e 76% dos beneficiários das aposentadorias rurais não pertencem ao grupo dos 40% mais pobres da população. Ademais, o nível dos benefícios concedidos por esses programas é muito mais alto que o de outros programas de assistência social – o benefício máximo concedido pelo Bolsa Família é cerca de um terço do que é concedido pelo BPC e pelas aposentadorias rurais”, afirma ao propor que ambas as aposentadorias sejam consolidadas com outros programas de assistência social para maior economia de recursos.


         No caso dos subsídios salariais, o Banco Mundial recomenda que o abono salarial seja transformado em um subsídio pago ao empregador como um incentivo à contratação de indivíduos desempregados há muito tempo ou pessoas em busca de um primeiro emprego no mercado de trabalho formal, o que reduziria o número de beneficiários. O valor economizado seria investido em outros programas, como os de treinamento e intermediação de mercado de trabalho “que são mais efetivos para melhorar o pareamento (entre trabalhadores e empregos) e, assim, a produtividade”. “Além disso, a reforma aumentaria a capacidade do Brasil de fornecer serviços de intermediação com o mercado de trabalho e apoio à busca de emprego, o que resultaria em ganhos de produtividade gerados pelo uso da mão de obra ociosa”.


        No apoio aos desempregados, segundo o relatório, a integração do FGTS com o seguro desemprego como instrumentos sequenciais poderia reduzir as despesas com o último em mais de 95% e extensão de seu período máximo de pagamento “para a minoria de trabalhadores que realmente necessita do benefício” e limitação do pagamento do fundo a um valor máximo mensal de cerca de 70% do último salário. Possíveis restrições ao acesso ao abono e ao seguro desemprego já foram discutidas pelo governo federal (leia aqui) este ano. “Certamente, há sintonia fina entre a pauta de contrarreformas do governo Temer e a agenda política do Banco Mundial. Isso evidencia que as prescrições do relatório não são exclusivas do Banco. Há setores políticos e econômicos do país interessadíssimos em demolir direitos sociais, econômicos e trabalhistas arduamente conquistados”, afirma João Márcio Pereira.


2018 e suas novidades
para os brasileiros.










Referências bibliográficas:

1 - RAFAEL DA SILVA BARBOSA - Texto na íntegra
2 - RELATORIO EM RELAÇÃO À SAÚDE
3 - RELATÓRIO DO BANCO MUNDIAL NA ÍNTEGRA







Fontes: OAPS -  ANFIP 


















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