quarta-feira, 20 de novembro de 2013

CONSCIÊNCIA NEGRA E SAÚDE

CULINÁRIA AFRO-BRASILEIRA


      Estima-se que, ao longo de quase quatro séculos, mais de de 11 milhões de africanos tenham sido trazidos para a América como escravos. Cerca de 4 milhões, para o Brasil. Coube a essa multidão suportar a parte mais difícil da construção do Novo Mundo: o trabalho mais duro, a carga mais pesada, a violência mais brutal. Os anos se passaram, o trabalho escravo deixou de ser a opção mais rentável e a escravidão foi legalmente banida. Como resultado de acontecimentos tão terríveis, ainda hoje os descendentes dos antigos escravos representam uma parcela significativa da população mais pobre e marginalizada do Brasil. Entretanto, essa não é a única parte da história, apesar de ser a mais conhecida, pois, do período escravocrata até o presente, muitos também encontraram caminhos para superar as dificuldades. Insubmissos, criativos e disciplinados, esses homens e mulheres viveram histórias vitoriosas.

     Dentre os limitados caminhos disponíveis aos escravos ou seus descendentes para alcançar a liberdade e prosperar, alguns foram especialmente importantes. Alguns deles utilizaram a criatividade e sensibilidade para dar vida a obras de artes visuais ou musicais que mudaram a trajetória das artes no Brasil. Outros se engajaram em lutas, fugas, revoltas, criaram organizações de ajuda mútua, conseguindo superar a opressão. Houve também os que, munidos apenas da própria fé, se tornaram líderes espirituais para milhares de brasileiros. E ainda os que tiveram acesso ao conhecimento, por meio da tradição ou da ciência e, sabendo aproveitar essa oportunidade, prosperaram como empresários, cientistas, intelectuais.

    Todas as histórias contadas aqui se passam na Bahia, especialmente em Salvador e cidades do Recôncavo. A razão é simples. Durante os primeiros séculos da colonização, Salvador era a capital do Brasil e também uma das  cidades mais importantes das Américas. Como o sistema escravocrata dominava, a população da cidade era, em sua maioria, formada por africanos e brasileiros negros e mestiços. O censo realizado em Salvador em 1807 contabilizou 50% de negros, 22% de mulatos e apenas 28% de brancos. Um predomínio que, aliás, se mantém até hoje. Por isso é que surgiram lá tantas expressões culturais de matriz africana que depois se espalharam por todo o país, como o samba-de-roda, a culinária afro-brasileira, a capoeira, o candomblé. Por isso aconteceram lá tantos episódios importantes para a história do negros. Assim, conhecer essas histórias é também conhecer melhor o Brasil.


   Há muitas formas de aprender: ler, ouvir, observar, praticar. Em busca de conhecimentos, homens e mulheres africanos e brasileiros percorreram todos esses caminhos, sempre com disciplina. Algumas mulheres encontraram esse saber na tradição. Fizeram de um fardo – a profissão de cozinheira – um poder. Aproveitando ingredientes e técnicas africanas, aprendidas com as mães e amigas, elas criaram aqui a culinária afro-brasileira. O sabor conquistou a todos e proporcionou a muitas dessas quituteiras, como as baianas de acarajé, a tão sonhada liberdade, independência financeira e até prosperidade. A fabricação desse bolinho ainda segue a receita tradicional e envolve tantos cuidados e mistérios que foi reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil. Em outro texto, contaremos a história de homens que encontraram esse conhecimento nos livros, nas universidades e no autodidatismo. São engenheiros, médicos, advogados, escritores e cientistas sociais que realizaram obras fundamentais para o Brasil. Mesmo em um país escravocrata, onde quase todas as portas estavam fechadas, eles descobriram os caminhos para o crescimento.

    A cena se repete há décadas, sempre no mesmo lugar. No pequeno largo que dá acesso à lagoa do Abaeté, ela surge sem avisar. Toda de branco, veste-se majestosamente, com uma longa saia engomada, linda bata feita de rendas e torço delicado sobre os cabelos. Maquiagem, um discreto esmalte cor-de-rosa, colar, brincos, pulseiras e anéis dourados completam a indumentária dessa filha de Oxum e Iansã, que combina fala mansa e temperamento obstinado. Com andar firme, mas sem pressa, mal olha para os lados ao atravessar a rua, enquanto os carros param para vê-la passar. Quem a vê assim, como uma rainha, nem imagina que a vida de Cira é feita de muito esforço. Ela acorda cedo, compra pessoalmente os ingredientes, participa do preparo da massa e acompanhamentos, orienta suas funcionárias sobre cada detalhe. Depois vem a hora da venda na rua, fritando os bolinhos e atendendo os fregueses até altas horas, todos os dias. Quem começou tudo foi a sua mãe, que já ocupava esse lugar antes dela nascer. Naquele tempo, Itapuã era pouco habitada, a clientela era pequena e mesmo no resto da cidade não havia muitas vendedoras da iguaria. Hoje, as coisas mudaram. Aonde quer que elas estejam – Cira, Dinha1, Loura, Chica, Ivone, Neinha, Regina e tantas outras – uma multidão se desloca diariamente para reverenciá-las e deliciar-se com o quitute incandescente que somente elas sabem fazer: o acarajé.


     Feito apenas com feijão fradinho, cebola, sal e frito no azeite de dendê fervente, não é à toa que esse misterioso bolinho tem a cor e a temperatura do fogo. O acarajé é um alimento sagrado, oferecido a Oyá, também conhecida como Iansã, a deusa africana que controla os ventos, as tempestades, os relâmpagos e tem poder sobre o fogo. Na religião dos orixás, os homens dialogam com os seus deuses através dos sacrifícios e oferendas de alimentos. O acará é um deles e veio parar no Brasil através dos escravos africanos iorubás. Como eram as mulheres negras que dominavam as cozinhas, não demorou para que essa e outras receitas africanas começassem a ser conhecidas e admiradas nas mesas brasileiras, conta Luis da Câmara Cascudo em seu livro A cozinha africana no Brasil. No Brasil colonial, acarajés, abarás e carurus, entre outros pratos, eram vendidos nas ruas em tabuleiros que as escravas de ganho equilibravam sobre suas cabeças, enquanto iam cantando pregões para atrair a freguesia. Com o que conseguiam juntar, muitas até conseguiram comprar a própria liberdade.

  

     Corajosas, independentes e empreendedoras, as “baianas”, como são chamadas, foram aos poucos arriando seus tabuleiros e se fixando em pontos estratégicos da cidade. Montar um tabuleiro para vender quitutes na rua, típico hábito africano, passou a significar, cada vez mais, a garantia do sustento da família. Além do preço acessível, do sabor delicioso e das qualidades nutricionais do bolinho de feijão, a simpatia das vendedoras sempre foi um tempero a mais, ajudando a conquistar uma freguesia cativa. Em Salvador, a partir da segunda metade do século XX, muitas delas ficaram famosas, como Romélia, Vitorina, Damásia e Quitéria, espalhadas principalmente pelo Centro e Comércio. Nas últimas décadas, a cidade cresceu na direção norte, levando prosperidade às baianas que trabalhavam perto do mar: Dinha, no Rio Vermelho; Dona Chica, na Pituba; Cira, em Itapuã. Mas há muitas outras rainhas do dendê, como Regina, na Graça e Rio Vermelho, a Loura no Horto Florestal, Dona Ivone no Bonfim ou Neinha nas Mercês.

    A vinda dos africanos não significou somente a inclusão de formas de preparo e ingredientes na dieta colonial. Representou também a transformação da sua própria culinária. Muitos pratos afro-brasileiros habitam até hoje o continente africano, assim como vários pratos africanos reinventados com o uso de ingredientes do Brasil, como a mandioca, também fizeram o caminho de volta.

      Sem duvidas, as grandes matrizes da diversa e variada cozinha brasileira está em um Portugal ampliado com a África, com o Oriente e com as centenas de culturas indígenas. No que se refere aos ingredientes africanos que vieram para o Brasil durante a colonização, trazidos pelos traficantes de escravos e comerciantes, esses constituem hoje importantes elementos da cultura brasileira. Seu consumo é popular e sua imagem constitui parcela importante dos ícones do imaginário do país.

     Pode-se caracterizar a cozinha de herança africana no Brasil como adaptativa, criativa e legitimadora de muitos produtos africanos e não africanos que foram incluídos regionais e em outros de presença nacional. O nosso tão celebrado coco-verde vem da índia, passando antes pela África Oriental, África Ocidental, Cabo Verde e Guiné para então fixar-se no Nordeste brasileiro.

     Vieram da África, entre outros, o cocô, a banana, o café, a pimenta malagueta e o azeite-de-dendê. Sobre este, dizia Camara Cascudo: “O azeite-de-dendê acompanhou o negro como o arroz ao asiático e o doce ao árabe”. O dendezeiro é uma palmeira de origem africana, e de sua polpa se extrai o azeite que dá a cor, o sabor e o aroma de tantas receitas deliciosas como o caruru, o vatapá e o acarajé.

Das delicias da África Brasileira todos já pudemos degustar.

     Quem não se demorou em torno a um fogão quente de arroz doce ou de pé de moleque aguardando a rapa do tacho, ou não esperou impaciente que a pamonha estivesse cozida ou a batata doce de São João cheirando por entre as brasas?

   Hoje em dia, os pratos e os temperos da cozinha negra fazem parte da nossa alimentação. São saboreados no dia-a-dia e também nas festas populares. Os caldos, extraídos dos alimentos assados, misturados com farinha de mandioca (o pirão) – já conhecido pelos índios – ou com farinha de milho (o angu), são uma herança dos africanos. Podemos lembrar que da África também vieram ingredientes tão importantes como o coco e o café.

A popular pamonha de milho, por sua vez, origina-se de um prato africano, o acaçá.

Não se pode deixar de mencionar um dos pratos afrobrasileiros favoritos do país: a feijoada, que também se originou nas senzalas. Os negros recebiam todas as sobras de alimentos dos donos das fazendas e faziam a mistura com o feijão, resultando em um alimento de grande consistência. O prato se tornou tradicional na cultura afro-brasileira e hoje faz parte de muitas festas. O prato leva como principais ingredientes carne defumada e de porco, couve e farofa.

     Doces de frutas como banana, jaca e laranja eram feitos na Serra da Barriga, antigo Quilombo dos Palmares.

    Os vegetais ocupam um papel importante na culinária africana, sendo a principal fonte de vitaminas e fazendo parte de vários pratos constituídos de milho, mandioca, inhame e feijão. Esses vegetais também fornecem fonte secundária de proteínas. Em geral, folhas verdes e hastes jovens são coletadas, lavadas, cortadas e preparadas no vapor ou fervidas em combinação com especiarias e outros vegetais como cebola e tomate.

     Os temperos utilizados na comida afro-brasileira são o açafrão, o óleo de dendê e o leite de coco. O cuscuz já era conhecido na África antes da chegada dos portugueses ao Brasil, e tem origem no norte da África. No Brasil, o cuscuz é consumido doce, feito com leite e leite de coco, a não ser o cuscuz paulista, consumido com ovos cozidos, cebola, alho, cheiro-verde e outros legumes. O leite de coco é usado para regar peixes, mariscos, arroz-de-coco, cuscuz, mungunzá e outras iguarias.

    A cozinha negra fez valer os seus temperos, os verdes, a sua maneira de cozinhar. Modificou os pratos portugueses, substituindo ingredientes; fez a mesma coisa com os pratos da terra; e finalmente criou a cozinha brasileira, descobrindo o chuchu com camarão, ensinando a fazer pratos com camarão seco e a usar as panelas de barro e a colher de pau.

Manifestação Cultural

O candomblé tem uma relação muito especial com a comida. Os devotos servem para os santos comida que pertencem à tradição africana. Como as comunidades negras se espalharam pelo Brasil, a culinária que veio da África se espalhou por todo o país.

“Olubajé: o banquete sagrado dos orixás“. Olubajé é um ritual onde são servidos alimentos da religiosidade afro.É também dedicado ao orixá Obaluaiê, o senhor da Terra. A cerimônia é indispensável nos terreiros de candomblé, prolongando a vida, e trazendo saúde a todos os filhos e participantes do axé.


      Festa de São Cosme e Damião: A festa é caseira, mas farta. Todos os anos, no mês de setembro, ela acontece em milhares de lares baianos. Difícil imaginar uma mais sincrética. O “Caruru de São Cosme e São Damião” homenageia os santos gêmeos da igreja católica, os Ibêjis do candomblé e também as crianças. Tudo precisa ser feito no mesmo dia: caruru, xinxim de galinha, vatapá, arroz, milho branco, feijão fradinho, feijão preto, farofa, acarajé, abará, banana-da-terra frita e os roletes de cana. A dimensão da oferenda é medida pela quantidade de quiabos do caruru. Cada um faz como pode: mil, três mil ou até 10 mil quiabos. Quando a comida fica pronta, coloca-se uma pequena porção nas vasilhas de barro aos pés das imagens dos santos, ao lado das velas, balas e água. Depois, serve-se o caruru a sete meninos com, no máximo, 7 anos cada. Eles comem juntos, com as mãos, numa grande gamela de barro ou bacia. Só então é a vez dos convidados participarem da celebração.
      A história da devoção a São Cosme e São Damião é antiga e atravessa continentes. Na Bahia, a fé nos santos irmãos ganhou importância principalmente pelo sincretismo com Ibeji, o orixá duplo dos nagôs, que representa os gêmeos. Alguns usam só quiabo, cebola, sal, camarão e azeite de dendê. Outros acrescentam castanha, amendoim, pimentão e tomate. Nutricionalmente, o caruru é um prato rico em ferro proveniente do quiabo e o dendê fornece vitamina A pela presença do betacaroteno, bom para a pele e para os olhos. Já com as castanhas e o amendoim, o prato é fonte de proteínas e gorduras insaturadas.
LEI 10639/03
    Desde a década de 90, o surgimento de um aparato jurídico normativo que contemplasse a diversidade étnico-racial era reivindicado intensamente pelo Movimento Negro; na discussão acerca das minorias raciais, étnicas, sexuais, religiosas etc.

    A relevância da questão racial para o equacionamento da questão social no país ficou mais evidente quando, durante a campanha presidencial de 2002, os principais candidatos à presidência da República se viram obrigados a tratar, no debate público em rede nacional de televisão, o tema das ações afirmativas para negros.

     A positividade do cenário se expandiu quando Lula sancionou, no dia 09 de janeiro de 2003, a lei nº 10639, a primeira do seu governo. A referida lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e introduz a obrigatoriedade da temática história e cultura afrobrasileira no Ensino Básico públicos e privados. Durante o primeiro ano, em meio a controvérsias e ambiguidades, o diagnóstico que inspirava as iniciativas governamentais em relação à questão étnico-racial, como citamos abaixo, coincidia com as expectativas da maioria dos grupos e entidades negras espalhados por todo o país. Além disso, o surgimento, no âmbito do Ministério da Educação e da Secretaria de Educação Continuidade Alfabetização e Diversidade (SECAD), em 2003, indicava a importância que o tema da diversidade étnicoracial assumiria na área de política social do governo Lula.

    No ano seguinte, o Conselho Nacional de Educação CNE, a partir da Resolução n. 1, de 17 De Junho de 2004, favorece a formulação de diretrizes específicas para a educação das relações raciais.

20 de novembro - dia nacional da CONSCIÊNCIA NEGRA


OU CONSCIÊNCIA HUMANA ?

    Quase QUATRO QUINTOS da nossa História (é pouco isso?) foram vividos sob o regime escravocrata. A escravidão não foi praticada indiscriminadamente contra todos os seres humanos que aqui viviam até 1888. Não é possível que hoje queiramos fingir para nós mesmos que as consequências da escravidão sejam ainda sentidas, sem qualquer distinção, por brancos e negros.
    Falar que o Dia da Consciência Negra deveria ser substituído por um dia da “consciência humana” no nosso país seria como sugerir que todo esse passado de violência atroz contra os negros seja esquecido. Combinamos assim: “faz de conta que ninguém foi tratado diferentemente em razão da cor de sua pele e, por isso, hoje somos todos iguais. Humanos, com as mesmas oportunidades. Né?” Isso é o cúmulo da falta de consciência histórica!
     Se os seres humanos não tivessem inventado um sistema de dominação que submete outros seres humanos a um poder instituído com base na marginalização da maioria em razão de traços como origem geográfica e cor da pele, aí sim, seria lindo celebrar a humanidade como uma coisa harmônica.
     Mas, enquanto persistirem os efeitos dessas experiências de subjugação, exploração e aculturação que se abatem sobre aqueles a quem foi negado até o direito de serem reconhecidos e respeitados como seres humanos, temos a obrigação moral de reconhecer que infelizmente, no estágio evolutivo em que nos encontramos hoje, muito pouco há para se celebrar em razão do fato de sermos “todos seres humanos”, mas há muito o que se lembrar a respeito de tudo o que já se fez neste país contra seres humanos que, por causa da cor de sua pele, foram subcategorizados como uma raça inferior não pertencente à espécie humana.



Fontes:
Fotos: Arq.FELIXFILMES


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